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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Campanha na Rússia: a mais dura das batalhas

Campanha na Rússia: a mais dura das batalhas

A desastrosa invasão da Rússia em 1812 foi o início de uma reviravolta nas Guerras Napoleônicas. enfrentando incêndio, fome e um frio apavorante, o grande exército francês sofreu como nunca

Natalia Yudenitsch | 01/09/2005 00h00
Do alto das colinas da aldeia de Borodino, a 124 km de Moscou, Napoleão Bonaparte esperava o desfecho de mais um histórico embate. Era setembro de 1812, e a vitória francesa na campanha da Rússia parecia certa. Depois da derrota russa na Batalha de Borodino, no dia 7 do mesmo mês, o imperador francês pretendia encerrar a questão e se apossar do coração do império russo, Moscou, cujas cúpulas douradas já podiam ser avistadas no horizonte. Impaciente, aguardava uma comissão de boiardos com a chave da cidade, a rendição oficial e um tratado de paz assinado pelo czar Alexandre I. Os dias se passavam e nada. No dia 14 de setembro, Napoleão se cansou e iniciou a invasão final. Seria o mais dramático combate de seus soldados.
Assim que os franceses passaram pelas ruas da cidade em direção ao Kremlin, pequenos incêndios começaram a pipocar. Eles olhavam espantados ao redor. A cidade, de 250 mil habitantes, emudecera. A princípio, creditaram o silêncio aos moscovitas, temerosos e encerrados em suas residências. Logo descobriram que um planejado êxodo havia levado o povo a abandonar sua terra carregando bens e reservas alimentícias. Os mais abastados levaram as carroças. Os humildes partiram a pé, carregando sacos cheios nas costas. Para trás ficaram apenas 25 mil pobres e miseráveis, remanescentes de esfacelados batalhões russos e criminosos, que não tinham condições de deixar a cidade. Daí para o fogo, foi um pequeno passo. Para o assombro e desespero do exército francês. "Como os cossacos tinham o hábito de atear fogo nas casas depois de pilhá-las, é provável que o incêndio tenha começado por causa deles", avalia Douglas Boullard, professor de história européia da Universidade da Califórnia, nos EUA. Com as bombas-d´água sabotadas pelos russos e as casas predominantemente de madeira, as chamas logo se alastraram. Alojado no Kremlin, Napoleão assistiu estarrecido o fogo de-vorar a bela Moscou, que ardeu por cinco dias, reduzindo-se 4/5 de todas as suas construções a cinzas. "Sobraram os prédios de tijolos, as igrejas de pedra e o Kremlin, ironicamente salvo pelos próprios homens de Napoleão, que haviam se instalado em suas dependências", diz Elena Remenik, coordenadora do centro de estudos de Cultura Russa da Universidade de São Petersburgo, na Rússia.
"Se Moscou não tivesse queimado, Alexandre I teria sido obrigado a fazer a paz", diria Napoleão mais tarde. A verdade é que as relações entre o imperador francês e o czar russo já se mostravam delicadas havia muito tempo. O governo russo estava preocupado com a expansão do poder de Bonaparte. Alexandre I tomou partido da Áustria contra o conquistador, em 1805, e da Prússia, em 1806, mas terminou derrotado nas duas guerras nesses países. As coisas se complicaram com o bloqueio continental, que levou ao enfraquecimento de vários países com os quais ele mantinha relações comerciais. Para o francês, a Rússia era um incômodo, um gigante que se erguia solitário fora de seu abraço no continente europeu. Foi daí que nasceu a idéia da invasão.
EXÉRCITO GIGANTESCO
Para um projeto dessas dimensões, em 1810 Napoleão começou a preparar uma tropa à altura. A grande armée (grande exército, em francês) reunia mais de meio milhão de homens. "Eram 610 mil combatentes, levando 1 420 canhões. Ao todo, 678 mil, se contarmos as tropas reservas. Esse gigantesco exército era formado por gente da Prússia, Áustria, Bavária, Saxônia, Itália, Polônia, Espanha, Croácia e até de Portugal. Apenas 200 mil eram franceses", revela Gilbert Rubin, professor e especialista em história militar da Universidade de Essex, no Reino Unido. Em dois anos, o imperador francês conseguiu estruturar seu poderio militar na Polônia, próximo à fronteira ocidental da Rússia, no rio Nemen, entre as cidades de Kaunas (na atual Lituânia) e Grodno (na atual Bielorússia). Composta de dez corpos de exército, quatro tropas de cavalaria, mais a força de elite da Guarda Imperial, a grande armée tinha como foco central um exército comandado pelo próprio Napoleão, com 250 mil homens e 527 canhões. Seu irmão mais novo, Jérôme Bonaparte, e um enteado, Eugène Beauharnais, conduziam suas divisões ao lado de marechais como Louis Davout, Nicolas Oudinot, Michel Ney, Joachim Murat e Louis Alexander Berthier. O plano era entrar na Rússia, tomar a capital, fazer o czar pedir água, sair com uma rendição assinada e retornar à França com a Europa aos pés de Napoleão.
SEM AVISO
A campanha começou na madrugada do dia 24 de junho de 1812, quando o grande exército napoleônico cruzou o Nemen e invadiu a Rússia sem avisos ou declarações formais de guerra. A ação foi um golpe nos planos de Alexandre I, que desde maio vinha montando seu próprio grande exército. Incluindo cossacos e milícias populares, chegava-se à espantosa cifra de 900 mil homens. "O problema é que essa massa militar estava sendo reunida na Moldávia, na Criméia, no Cáucaso, na Finlândia e em regiões do interior do império, longe demais do local de entrada do exército francês. Por isso, em junho de 1812 os russos só conseguiram colocar cerca de 280 mil homens e 934 canhões na fronteira ocidental", analisa Aleksei Koshka-rin, especialista em história militar da Universidade Estadual de Novosibirsk, na Rússia. Ao todo, eram três exércitos cuidando da fronteira. O 1º Exército, com 160 mil homens, combateria sob as ordens do general e ministro da guerra, Mikhail Bogdanovich Barclay de Tolly, posicionado em direção a São Petersburgo. O 2º Exército, de Pyotr Bagration, general e príncipe da Geórgia, tinha 62 mil homens e se fixara entre os rios Nemen e Bug, ao norte dos pântanos de Pripet. Já o Terceiro Exército, do general Pyotr Alexander Tormasov, tinha cerca de 58 mil homens e olhava para o sul, em direção a Kiev. Sem condições de contra-atacar, os russos começaram a se retirar para dentro da pátria-mãe. "Era uma necessidade para oferecer combate aos invasores", explica o professor Aleksei Koshkarin. Em 8 de julho, a Rússia saiu às ruas para ouvir um manifesto de Alexandre I que conclamava o povo a combater os franceses. "As milícias populares vieram por causa do chamado, apoiado pela Igreja Ortodoxa. Cossacos, camponeses e até ciganos se alistaram aos milhares", diz Elena Remenik.
Mesmo assim, no dia 23 de julho o marechal Davout bloqueou a passagem do general Bagration em Mogilev (na atual Bielorússia) e impediu sua reunião com Barclay e, por extensão, a reação russa. Os problemas, entretanto, já começavam a rondar a brigada francesa. Sem ter lutado nenhuma batalha decisiva, a grande armée havia sido reduzida em cerca de 2/3 por causa de fadiga, fome, deserção e morte. A vantagem, porém, continuava ao lado de Napoleão. No lado oposto, o czar reclamava da incompetência de Barclay em interromper o avanço francês e o substituiu pelo general Mikhail Illarionovich Kutuzovem 20 de agosto. Este, contudo, após tomar ciência da situação, continuou a estratégia de seu antecessor. Na época, ele disse o seguinte a seus homens: "Os franceses vieram para cá sozinhos e sozinhos voltarão". Sábias palavras. "É preciso entender que essa retirada russa escondia um mecanismo perverso. Quanto mais os franceses avançavam, mais sofriam com a falta de comida e armamentos. Em paralelo, as fileiras de Alexandre I engordavam", explica Vladimir Borshevski, especialista em exército e marinha russos da Universidade Estadual de Moscou. Preocupado em conseguir suprimentos, Napoleão rumou para Moscou, onde tinha a certeza de poder se reabastecer. Não foi bem o que aconteceu.
Em setembro, o general Kutuzov achou que chegara o momento de parar e lutar. Estacionou seus então 155 mil homens e 640 canhões na aldeia de Borodino, a menos de 150 km de Moscou. No dia 7 de setembro, às 6 horas da manhã, Napoleão deu início ao ataque com seus 135 mil homens e 587 canhões. O sangue jorrou até depois do pôr-do-sol. "Foram cerca de 16 horas de confronto ininterrupto, transformando Borodino na maior batalha de um dia das Guerras Napoleônicas", comenta Gilbert Rubin. "Apesar de a vitória ter sido francesa, a armada de Napoleão amargou 58 mil mortos, incluindo 48 marechais. Os russos perderam quase metade de seu exército: 66 mil baixas, entre elas a do general Bagration." A demora na chegada do reforço e o massacre do dia anterior fizeram Kutuzov optar pela retirada. "Enquanto Napoleão esperava a rendição do czar, o inimigo aumentava seus exércitos rapidamente", acrescenta o professor Borshevski.
LONGA MARCHA DE VOLTA
Napoleão teve então de reavaliar as opções. Seu exército estava enfraquecido. As linhas de abastecimento foram cortadas. A rendição inimiga não dava mostras de acontecer. Após cinco semanas acampando sobre as cinzas da cidade, decidiu dar meia volta e iniciar o retorno à França em 19 de outubro. Junto aos soldados, seguiram uma lenta procissão de carroças carregadas de peles, prata, porcelana e seda - fruto de saques. Em 24 de outubro, 20 mil homens do marechal francês Delzons procuravam suprimentos em Maloyaroslavets, a 121 km de Moscou. Ao dar com os primeiros franceses, o general russo Kutuzov cometeu um erro. Acreditando se tratar de uma facção desgarrada, enviou apenas 12 mil homens para detê-la. A Batalha de Maloyaroslavets, apesar da vitória tática de Napoleão, favoreceu os russos.
O imperador francês foi empurrado de volta ao caminho devastado usado na ida. No dia 4 de novembro, uma neve pesada começou a cair sobre os franceses desnutridos. No dia 9, a temperatura caiu para cerca de -26° C e continuava baixando. O frio penetrava nas roupas esfarrapadas dos soldados e se somava à exaustão. Muitos mal conseguiam andar, quanto mais resistir aos constantes ataques dos cossacos liderados pelo chefe Matvey Ivanovich Platov. "Quando essa multidão maltrapilha finalmente alcançou os suprimentos guardados em Smolensk, toda a disciplina militar foi para o espaço", conta Elena Remenik. "Uma turba de soldados famélicos saqueou os armazéns e destruiu boa parte dos alimentos, que poderiam ter durado o inverno inteiro", descreve. Por volta do dia 16 de novembro, sob o frio de -32° C, a marcha tentava ir para casa.
O passo seguinte era atravessar o rio Berezina (na atual Bielorússia). No dia 26 de novembro, os remanescentes da grande armée caíram numa armadilha. Pela frente os russos seguravam a ponte. Por trás pressionava o exército de Kutuzov. Em segredo, Napoleão enviou seu corpo de engenharia para construir uma ponte improvisada sobre o semicongelado Berezina. Quando os russos perceberam, abriram fogo. Cerca de 10 mil russos pereceram, contra 36 mil franceses, muitos dos quais só foram encontrados com o degelo da primavera. No dia 14 de dezembro de 1812, sob um frio de -38° C, apenas 10 mil homens conseguiram cruzar o rio Nemen de volta. A contagem das baixas do fracasso napoleônico: 550 mil homens mortos. No lado russo, 250 mil soldados efetivos e 50 mil entre milícias cossacas e populares. A campanha da Rússia mostrou que Napoleão não era invencível. Muitos países se rebelaram. Era o fim do sonho napoleônico de um domínio da Europa.

Legado literário

Quando se fala em campanha da Rússia, há duas referências obrigatórias. A primeira vem das mãos de Carl von Clausewitz, um general prussiano e teórico da guerra que assessorou as forças do czar Alexandre I durante o período da invasão de Napoleão à Rússia e, mais tarde, participou da fatídica Batalha de Waterloo. Presente ao incêndio de Moscou, ele registrou sua experiência e suas análises no livro A Campanha da Rússia de 1812 (ed. Martins Fontes), em, que apóia a tese de que o fogo não havia sido premeditado. É dele também o conceito de guerra total, em que se utilizam todos os recursos disponíveis para aniquiliar a capacidade de combate do inimigo. Acusado por muitos de dar base e aval ao alto grau de devastação visto durante as duas Guerras Mundiais, Clausewitz tentou evitar a simplificação de suas idéias, que constatavam apenas que a guerra e a destruição eram partes inevitáveis do conflito armado. Era um contraponto às idéias do chinês Sun Tzu em seu A Arte da Guerra (ed. Record). Brilhante estrategista, é reconhecido por seu livro Da Guerra (ed. Martins Fontes). Um dos mais importantes tratados sobre o tema, tem as habilidades de Napoleão como destaque. Leitura obrigatória em qualquer academia militar, ele analisa aspectos táticos e políticos da guerra. Outro olhar indispensável, mas romanceado, é a saga Guerra e Paz (ed. Ediouro), do russo Leon Tolstoi. Nele, se descreve a Rússia durante as guerras napoleônicas e conta-se a história de cinco famílias da aristocracia local. Pacifista, anarquista e com um talento colossal, Tolstoi esmiúça detalhes da Batalha de Borodino e oferece um olhar russo sobre a grande batalha. Sobre o incêndio de Moscou, coloca na boca de um personagem a certeza de que inferno se combate com inferno.

Descansem em paz

Em 2001, uma escavação de rotina em Vilnius, capital da Lituânia, tinha por objetivo preparar as fundações para a construção de um complexo habitacional. Assombrados, os trabalhadores se depararam com um tesouro histórico: os ossos de 2 mil jovens, no que parecia ser uma cova comum. A princípio, parecia tratar-se de mais uma prova das atrocidades cometidas pela polícia secreta soviética (desde o NKVD, da era Stálin, até a KGB, que reinou entre as décadas de 50 e 90). Essa tese era reforçada pelo fato de a área ter sido utilizada como base do Exército Vermelho anteriormente. A verdade, porém, logo apareceu. Arqueólogos se emocionaram ao descobrir os restos mortais de soldados franceses mortos durante a campanha da Rússia em 1812. Era a primeira vez que aparecia uma sepultura coletiva de soldados da grande armée napoleônica. O local (na época parte do império russo), fez parte da trajetória da terrível marcha de volta à França feita pela armada de Napoleão. A identificação foi possível graças a moedas com a éfigie de Bonaparte, pedaços de botões, cintos de uniformes e botas encontrados junto aos esqueletos. Os corpos congelados dos rapazes ressaltavam sua juventude. Alguns tinham apenas 15 anos e provavelmente eram responsáveis pelo rufar dos tambores franceses. Outros tinham entre 18 e 21 anos, a maioria composta de jovens altos, ao contrário da conhecida baixa estatura do líder Bonaparte. Com o passar dos exames arqueológicos, uma surpresa: esqueletos femininos se juntavam aos soldados na sepultura coletiva. Para os pesquisadores, eram prostitutas, lavadeiras e serviçais dos oficiais franceses. Não havia sinais de ferimentos graves feitos por balas, espadas e canhões. As causas da morte eram congelamento, fome e doenças. Seu carrasco fora o mesmo que expulsara os franceses das estepes: o impiedoso inverno russo, que batera quase nos -40° C durante a caminhada de volta ao solo francês.

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